quinta-feira, 11 de dezembro de 2008

Sobre o ser

Com essas idéias de educação rondando a mente,

Quinta-feira, 9 de outubro, fui surpreendido por uma equipe do SBT fazendo reportagem para um daqueles estranhos programas vespertinos. A coisa até que foi organizada, a equipe permaneceu quase toda a aula na sala tentando manter a discrição. A aula foi dada conforme o previsto e não ocorreram maiores contratempos. Porém, após o sinal, houve uma rápida entrevista, e não é que logo na primeira pergunta a moça-repórter me tasca assim, à queima-roupa, “O que é ser professor ?”Como assim ? Trata-se de uma pergunta gigante, seriam necessárias horas de reflexão para dar uma reposta minimamente aceitável. Surpreendido, disse qualquer bobagem sobre subir no palquinho, falar coisas e ser compreendido, enfim, desfiei algumas tolices sobre aquilo que de mais evidente existe na atividade de professor. Mas a pergunta me acompanhou pelo resto do dia. Com o tempo, foi saindo uma resposta um pouco mais elaborada que tento esboçar em seguida.Ser professor significa, em primeiro lugar, compartilhar com os alunos um lugar chamado sala de aula e lá criar nada menos do que um espaço de sociabilidade. Por espaço de sociabilidade entendo um local de troca, única forma possível de se obter um conhecimento verdadeiro. Em outras palavras, a experiência de sala de aula tem como pré-requisito a interação entre o professor (que deve ser mais do que um mero enunciador do discurso verdadeiro) e os alunos (que não devem se limitar a ouvintes passivos). A interação, todavia, se faz a partir de dois pressupostos: em primeiro lugar a existência de um indivíduo chamado “professor” que, de fato, passou por mais experiências de vida ou simplesmente leu mais livros que os alunos. Nesse sentido, o professor continua sendo o referencial na sala de aula, porém sem menosprezar a vivência do aluno: há experiências que não foram vividas pelo professor, há livros que não foram lidos. Em segundo lugar, a rejeição às fórmulas simples do “debate entre alunos”, que muitas vezes resultam em uma avalanche de achismos e na mera expressão desencontrada de obviedades.Como proceder ? O espaço de sociabilidade começa a existir a partir do momento em que o professor se apresenta como uma personalidade (inventada ou não), ou seja, um indivíduo como os outros, dotado de dúvidas, angústias e incertezas. Isso abre espaço para um verdadeiro jogo de espelhos, uma vez que o aluno também tem os mesmos medos: entra em cena a dessacralização da figura do "mestre". Enxergar o professor como uma personalidade implica tornar possível identificação (ou rejeição) com essa figura, transformando o estudo, que deixa de ser a análise de objetos distantes e passa a ser uma análise de questões que envolvem a própria subjetividade do aluno e a sua constituição. O conteúdo das “ciências humanas” facilita essa prática ao abordar, mais cedo ou mais tarde, questões que remetem às paixões humanas.Dessa forma, ser professor é apresentar essas questões, “levantar a bola”, aproveitando do espaço de sociabilidade criado para que as interações possíveis rendam frutos e levem a reflexão para diante. E aqui surge um aspecto decisivo do tal espaço: nos interstícios da relação professor-aluno, aquilo que foi sugerido na sala de aula é expandido. Nos encontros (fortuitos ou planejados), nos corredores, em outras atividades ou mesmo no blog, a aula prossegue, sob a forma de uma reflexão viva. Mas, sobretudo, a aula prossegue nas conversas entre os alunos, não sob a forma ao mesmo tempo desencontrada e cronometrada dos afamados “debates" de sala de aula, mas em suas vidas sociais, nos seus encontros, nas suas famílias. Nesse sentido, ser professor é ser um provocador.A última pergunta da repórter foi, “Qual sua maior satisfação ?”. Por pouco não caí na armadilha, respondendo o óbvio: “a aprovação nos vestibulares bla bla bla”... conversa fiada, minha maior satisfação tem pouco a ver com isso. Balbuciei algo a respeito do aluno dizer “valeu” ao final do curso, com ou sem aprovação no vestibular. Porém, pensando mais no assunto, não tenho dúvida em dizer que a maior satisfação está em chegar em casa depois de uma manhã de aula, sentar na poltrona vermelha da sala e recordar o que aconteceu durante o dia. Nesse momento, fico imaginando se as pessoas estarão refletindo no que foi dito, nas coisas que aconteceram, nas bolas que foram levantadas. Fico imaginando até que ponto as pessoas mudaram, ou se sentiram melhores (ou piores) ou “mais sábias” depois da aula. Ou ainda, fico pensando até que ponto aquilo que aconteceu durante a aula ajudou cada aluno a avançar um pouquinho mais na direção do conhecimento daquilo que cada um de nós vagamente chama de “eu”. Diante dessas possibilidades, passar ou não no vestibular torna-se algo efêmero: quem não passa neste ano passa no próximo, quem não entra nesta faculdade, entra na outra; e daqui a 20 anos, tudo isso não fará tanta diferença assim. Mas se daqui a 20 anos a reflexão proposta ou a mudança despertada ainda fizer parte das pessoas, o troço todo valeu a pena. Para mim e para os alunos, pois fizemos de uma parte da vida uma experiência rica, de troca social e busca de conhecimento. O estudo para o vestibular acabou se transformando em uma mera desculpa para uma atividade que tem como horizonte o conhecimento de si mesmo.(Vou além: se as pessoas que passam diante de nossa vida levam alguma coisa de nós e, de alguma forma, passamos a fazer parte de suas vidas - seja no jeito como elas são, ou na sua memória -, e se isso for passado ainda para outras pessoas, e depois outras, e com o passar do tempo ainda outras, acabamos por ganhar nada menos que a imortalidade. Dessa forma, o maior medo ancestral é superado, e um dia aprendemos a lidar com a morte, serenamente).Em outras palavras, ser professor é uma forma que encontrei de levar a vida do jeito que ela deve ser vivida. A construção da personalidade que transporto para o palquinho (com tudo que tem de verdadeiro e de invenção) significa um questionamento constante sobre o meu próprio eu, principalmente porque essa construção nunca é feita a priori, mas vai surgindo ao sabor das aulas e da interação com as pessoas. Ser professor talvez seja exorcizar os medos mais íntimos.
Gian Dorigo é professor de história no curso Anglo e escreve texto no blog gianprof.blogspot.com